O AMOR
Por falta de uso , meu
amor ficou fora de moda .
Ao abrir o armário para arrumar o que guardava de antigos
pertences , inundou o ar um cheiro de melancolia que logo reconheci , por
tratar-se do peculiar perfume de minhas
mais fortes lembranças .
Dentro do móvel pendia ao fundo ,em um canto , o meu Amor.
Tive de pegá-lo no cabide onde estava, com muito cuidado , pois temia que , de repente ele esfarelasse e sumisse por
entre meus dedos que , amarelados por cigarro e tempo , detinham traços de pés
de pombo.
Estendi o Amor por sobre a cama para ver em que estado se
encontrava , tive um pouco de trabalho, pois ele , arredio e tímido , se encolhia ,franzindo a toda hora .
Comecei a fazer planos : subir-lhe um pouco a bainha ,
encolher um pouco aqui e ali ,tirar
enfeites , adornar com coisas novas , refazer as costas e manter os ombros
altos .Sempre.Mas meu Amor estava cansado e me olhava com total descaso descrença
Num gesto que confundia : medo , culpa e desespero , arrebatei-o
de onde estava e o vesti assim mesmo , e
o que mais me causou espécie é que , apesar de todos aqueles anos de desuso , o
Amor caía-me como uma luva !
Resolvi colocar meu amor à prova .Coloquei-o frente a um espelho antigo
e austeramente belo e , cativado pelo singelo reflexo da união de nosso brilho, começamos a dançar ... uma
melodia terna e triste , típica de quem
ainda , lá no fundo da alma ,sabe ainda
crer em Pierrôs , Arlequins e algumas Colombinas ;sim , ão havia a menor sombra de dúvidas aquele era o meu Amor e aquela era eu .
Com a única agulha achada no meio das sobras de algumas
dores que ficaram jogadas numa antiga caixa de raríssimos sabonetes finos ,
alinhavei as partes de meu Amor que precisavam de pequenos mas inadiáveis consertos .
Esbarrei em uma pense já feita e lembrei-me com exatidão do dia em que ali se
instalara ...foi numa tarde triste ...sabia ser uma tarde ,pois somente as
tardes podem ser assim tão tristes ...o meu Amor havia ficado tão grande, que
ao invés de ter-lo ao seu lado , permiti
que me engolisse por inteiro , e , sendo assim , me perdi por dentro dele e , aos poucos me esqueci de quem era e fui me tornando somente um eco tonto e monocórdio
do Amor que se cansara de mim dentro de
si e , depois de ter-me anulado por completo
e um dia expulsou-me de si ;eu , para não enlouquecer,pois não sabia mais quem era -
exceto a repetição sem voz daquele Amor vazio , comecei a costurar esta perda na forma da tal pence pespontando-a
em minha memória , e talvez pela minha dor e impaciência ,deixei-a só pesponto
, não pelo esquecimento , mas provavelmente para que não mais esquecesse
daquela forma patética de amar ou do antônimo de qualquer amor :apêndice ,
pence.
Traída a minha confissão ,nada restava senão deixar minha
solidão na cadeira da sala e passar um pano úmido no único par de sapatos capaz
de alcançar meus sonhos e tocar meu destino ;coloquei um pouco de talco por
dentro para que o caminho percorrido não me doesse os pés nem cheirasse mal e
calcei-os oscilando entre a delicadeza de uma corça e a grave firmeza de uma
mulher que tem certeza de seu passado.
Pintei meu rosto com suavidade ,feito quem lida com a
pintura da cabeça de um alfinete em porcelana e , em determinadas juntas e , ao
longo do pescoço , coloquei um perfume áspero como lixa para que fosse dado um
toque de crueldade a este Amor .
Convidei -o a um passeio , gostaria de exibi-lo , desfilar
com ele ante as vitrines e observar –nos o reflexo , abri-lo como a um leque em
vaidades , causar inveja , despertar ira , despeito e anseio por sua morte e
sabendo despertar emoções tão distintas
nós riríamos um riso alto e santo , daqueles que se confundem com o
insano e este som ecoaria pelas ruas longas e estreitas daquela cidade clara de
aparência larga
Andamos , por muito tempo , ao largo e no meio de todos os
nossos sonhos .
Nunca fui tão minha quanto fui daquele Amor , sequer quando
permiti que me engolisse e , quase acreditei , que a felicidade era um momento
como aquele : a total falta de compromisso com as cores da realidade .
A noite implorava o meu aval para que o dia vazasse a
escuridão com seus longos dedos de vidro e meu amor pesava sobre mim como o
abandono...
Chequei em casa e, antes de mais nada tirei os sapatos para que o caminho não me fugisse aos pés
;depois , com o cuidado de quem traz o filho adormecido aos braços ,abri todos
os botões do meu Amor e que escorresse
pelo meu corpo , deitei-o novamente sobre a cama e ele se espalhou : lânguido
,tranquilo , criança cansada de tanto brinquedo ...
Com o carinho que deixei guardado por uma vida inteira ,
tirei-lhe algumas rugas e pendurei-o no mesmo cabide ,guardando-o no mesmo
armário , no mesmo canto ...para que não amarrotasse na pressa da despedida , para que não desbotasse
num desaviso , para que não voltasse a ficar ao meu alcance de meus olhos rotineiros , para que não se fartasse de mim pelo contínuo dos dias ,para que não se
eternizasse dentro dos meus olhos e assim ...desencantasse e perdesse o mágico encanto que o faz resistir nesse canto , tão bem guardado ,de mim ...
( Denise Dallal -1989 editado em 21/05/2013)
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